domingo, 17 de fevereiro de 2013

QUINTA-FEIRA NEGRA (PRIMEIRA PARTE)




Quinta-Feira Negra (primeira parte)
                                                                            de Cristiano Refosco

Quando dona Doca desceu do bonde na Avenida João Pessoa e sentiu que os ares da Cidade Baixa lhe batiam no rosto, respirou fundo e benzeu-se. Estava iniciada a sua audaciosa aventura de embrenhar-se naquele território populacho a fim de consultar-se com os siameses. Poderiam acusá-la de tudo nesta vida, de mulher sem muita serventia, de cabeça oca, mas não de mãe relapsa, e por isso, desde que uma cartomante lhe falara sobre um mau agouro para o casamento da sua filha Catarina, que dona Doca decidira ir procurar os irmãos xifópagos, peritos em desvendar o passado e prever o futuro.
Senhora de meia-idade, esposa valorosa e temente a Deus, dona Dorotéia Catarina nunca havia colocado sozinha os seus pés naquele antro de boemia e de perdição que era a Cidade Baixa. Por isso, quando viu-se na esquina da República com a Av. João Pessoa, dona Doca colou a bolsa que trazia junto ao corpo, receosa de que algum daqueles moleques que passavam ao seu lado pudessem roubá-la. Era capaz de tudo pela felicidade da filha, até mesmo, sair de casa determinada a achar os famosos videntes cuja foto havia sido publicada no Correio do Povo na última semana. Na foto em preto e branco do jornal, dava para se ter uma ideia de como eram os xifópagos, e por isso, ficava difícil saber o que era mais impressionante, se o aspecto chocante dos dois homens presos a um único corpo, ou se o conteúdo da reportagem, onde os dons premonitórios de ambos eram vastamente discutidos. Dizia a reportagem que um dos siameses era especialista em enxergar o futuro, fazendo previsões que sempre acabavam se concretizando, enquanto que o outro tinha a capacidade de saber de coisas já acontecidas há muito tempo e de localizar qualquer pessoa desaparecida.
- A vidente em que fui outro dia disse que o casamento de Catarina tem muito olho grande em cima, e que tem boa chance de uma tragédia acontecer – explicara dona Doca apavorada à sua comadre ainda outro dia. A comadre, muito sensata e cética, tentou despersuadir a amiga daqueles pensamentos. Catarina era jovem e bonita, e ia se casar com o Menelau, rapaz de fino trato e de boa família pelotense, bisneto de baronesa... Por isso, nada poderia sair errado.
- Essa gente só quer é nos impressionar, Doca. Pedem nosso dinheiro, nos dizem meia dúzia de bobagens e nós, de tão espantadas, acabamos sempre caindo nos seus golpes... – explicava a comadre balançando a cabeça.
Mas dona Doca preferia não arriscar. Naquela manhã de Sexta-Feira, ergueu-se do seu leito convicta a procurar os siameses, mesmo que tivesse que para isso, entranhar-se na Cidade Baixa. As suas primeiras impressões não coincidiram com as suas expectativas. Pessoas que nem ela, que nem o marido, caminhando pelas ruas, vendedores ambulantes batendo de porta em porta, meninos anunciando os periódicos diários. Aos poucos, foi percebendo que não tinha tantos motivos para sentir-se insegura, e chegou a pedir informação de como chegar até a residência dos siameses a duas senhoras que fofocavam descaradamente diante dos portões das suas casas, cada uma com uma vassoura de palha na mão.
De bom grado, explicaram-lhe como tinha que fazer para chegar até o local onde os xifópagos moravam, e em poucos minutos, dona Doca viu-se diante de um chalé velho, pertinho da Lima e Silva. Era ali que eles residiam, praticamente isolados de tudo e de todos, ainda que muito requisitados devido aos seus dons premunitórios. Na casa ao lado do chalé, uma mulher muito gorda debruçada sobre a janela, exibia praticamente metade dos seios, enquanto olhava os passantes com determinação. “Rexalada”, pensou dona Doca ao ver a gorda na janela com os peitos à mostra. Mas a felicidade de Catarina valia qualquer sacrifício, inclusive o de ver aqueles retratos obscenos do mundo.
Um frio na boca do estômago lembrou-a de que sempre fora sensível para coisas exóticas, e que não seria diferente naquele momento sinistro em que seus olhos veriam de perto os xifópagos. Após bater na porta do chalé, foi recebida por uma senhora de cabelos brancos e de pele áspera que a fez entrar e sentar-se ao redor de uma mesa disposta na sala escura. Sentiu-se dona Doca como se estivesse esperando um monstro mitológico, e não dois homens com quem iria conversar, e a súbita vontade de levantar-se e ir embora só não vingou porque os siameses logo vieram ao seu encontro.
 Ao ver-se diante daquele corpo forte e grande, com dois braços, duas pernas, um único e grosso pescoço e duas cabeças, Dona Doca sentiu um frio na espinha. Então era verdade... Os siameses existiam mesmo, não eram uma montagem de jornal... Deviam estar por perto dos sessenta anos, a julgar pelo branco dos cabelos de ambas as cabeças e pelas rugas distribuídas nas duas faces e trajavam um terno acinzentado sob medida que, certamente era o que usavam quando iam dar consultas.  Enquanto apertava a bolsa de couro junto ao corpo, em sinal de nítida ansiedade, dona Doca acompanhava com os olhos incrédulos o deslocamento daquelas estranhas criaturas que andavam lentamente, como se o peso de dois crânios lhes abrandassem os movimentos.  Viu-os sentarem-se a sua frente, com dois pares de olhos curiosos a lhe mirarem e foi então que um deles iniciou a conversa:
- Bom dia, senhora. Qual a sua graça e no que podemos lhe servir?
A voz de dona Doca saiu trêmula, quase sem força:
- Meu nome é Dorotéia Catarina, mas me chamam de Doca. Eu vim porque tenho uma filha que vai casar-se no mês que vem, e queria saber qual vai ser a sorte deste casamento.
Os siameses remexeram-se na cadeira e a senhora de cabelos brancos que havia aberto a porta para dona Doca aproximou-se com uma bacia repleta de água. Depositou o objeto em frente aos dois irmãos e, olhando para dona Doca, esclareceu:
- Eles enxergam as coisas aí dentro desta bacia. Um, vê as coisas que estão por vir, e o outro vê as coisas que já aconteceram... A senhora pode perguntar o que quiser.
Antes mesmo que dona Doca pudesse fazer alguma pergunta, um dos siameses franziu o cenho:
- Para que dia está marcado o casamento, senhora?
- Será no dia 10 de maio, sábado, na Igreja Nossa Senhora das Dores...
O outro irmão, cujos olhos se fixavam na bacia, foi categórico diante daquela informação, e sua voz soou com um certo tom de ameaça:
 - Naquela igreja que teve as suas torres amaldiçoadas por um escravo? Não começamos nada bem!
Dona Doca ficou boquiaberta. Diversas vezes já ouvira falar daquela lenda do escravo que fora enforcado injustamente na frente da igreja das Dores, e que lançara sobre ela uma maldição, mas nem tinha se lembrado disso quando Catarina e seu noivo Menelau a tinham escolhido como o palco para o casamento. Além do mais, aquilo tudo era superstição, crendice que não deveria ser levada a sério. Catarina havia escolhido a Igreja das Dores por causa da sua escadaria, para ser fotografada lá em cima, no seu rico vestido de noiva.
- Senhora, estou vendo aqui que não haverá casamento algum. Sua filha não se casará neste dia.
- Mas como? Está tudo acertado! A igreja, os proclamas, o padre, os convidados! – admirou-se dona Doca com os olhos arregalados.
- Sua filha não se casa... Estou vendo a igreja vazia, com a escadaria virada em cachoeira, com muita água e muitos ratos descendo por ela... Vejo um grande dilúvio em torno desse casamento.
Aquela era a segunda vez que algum tipo de oráculo lhe reservava má sorte para o casamento. Na outra vez, quando tinha ido até uma cartomante que vivia perto da usina, dona Doca havia recebido um prognóstico não menos macabro do que recebera agora dos siameses. A vidente, uma senhora rechonchuda que se vestia tal qual uma cigana – mas que traço algum daquele povo trazia junto ao rosto - tinha lhe prevenido sobre uma grande nuvem negra que pairava sobre o casamento de Catarina e de Menelau.
Atordoada com aquela macabra previsão, dona Doca tentou ordenar os pensamentos. E se fizessem um trabalho espiritual, quem sabe uma promessa para Nossa Senhora das Dores, para que corresse tudo bem com o casamento? O xifópago que via o passado balançou a cabeça com o escasso movimento que possuía no  pescoço e foi categórico:
- De nada adiantará, senhora. Santos não aceitam trabalhos espirituais. E, além do mais, o problema não está na santa, mas sim no noivo. Se sua filha quiser se casar neste dia de maio e na Igreja das Dores, terá que escolher outro rapaz.
Neste instante, dona Doca empalideceu, e seu rosto ficou tão branco quanto à superfície da bacia de porcelana em que os videntes estavam concentrados. Então haveria algum problema com Menelau, aquele jovem advogado que em tão pouco tempo arrebatara completamente o coração de Catarina! Mas o que haveria de ser? Alguma doença ou fatalidade?
- Ele vai bem de saúde, e vai viver muitos anos. O que tranca esse casamento é a bisavó dele, que já não está mais neste mundo.
- A baronesa! – bradou dona Doca de forma espontânea.
- Sim, a baronesa! Uma mulher muito ruim, que no tempo da escravidão judiou e tirou a vida de muitos negros... É por causa desta mulher que o casamento não vai acontecer... Estou vendo ela aqui, judiando dos cativos; e também vejo um escravo na porta da Igreja das Dores, trancando a passagem do noivo. Não terá casamento, senhora. Se insistirem, será pior...
A história que o siamês contava era verdadeira. Menelau Farias, o rico herdeiro de uma família de estancieiros de Pelotas, possuía entre os seus antepassados uma bisavó que durante os idos do Império ostentava o título de Baronesa do Laranjal, e que tinha praticado muitas barbaridades com os seus escravos.   Todavia, entender o que uma coisa tinha a ver com a outra, era agora a preocupação de dona Doca. Que culpa tinham a sua filha Catarina e o rapaz naquilo tudo para que o casamento se visse ameaçado? Acaso já não era morta a tal baronesa? Conversa mais descabida! Bem que a comadre lhe precavera contra essas invencionices que os videntes costumavam fazer!
O siamês que via o futuro fechou ambos os olhos e, como se tivesse agora a função de receitar uma solução para aquela situação, profetizou:
- Esse casamento só sai se mudarem a igreja, se escolherem dentro da nossa Porto Alegre uma outra capela. Se insistirem na Igreja das Dores, o mundo virá abaixo! O bisneto de uma baronesa não se casará numa igreja que é guardada por um escravo.
Mudar de igreja, justo agora, faltando pouco mais de um mês para o casamento? Catarina não concordaria com aquilo! Desde pequena que falava em se casar na igreja das Dores, e de descer a sua escadaria com um véu gigantesco que encheria os olhos de todos!  A filha seria contra, veementemente contra!
         Confusa e ofegante, dona Doca despediu-se dos siameses e partiu em direção ao centro, tomando aquela que um dia tinha sido a famosa Rua do Arvoredo, onde segundo diziam, uma outra Catarina e seu homem vendiam lingüiça feita de carne humana.  

continua...

OBS: conto registrado na Biblioteca Nacional. O uso do mesmo sem a prévia autorização do autor constitui violação de direito autoral.

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