terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A HISTÓRIA DA SOCIEDADE INCLUSIVA NA EUROPA - ÚLTIMA PARTE



Por Adolf D. Ratzka (Diretor do Instituto de Vida Independente, Estocolmo, Suécia, 1999)

    Foi somente na década de 70 que moradia acessível passou a ser discutida na Alemanha, como parte do programa social de moradia subvencionada pelo Estado. Mas isso acontecia apenas se o construtor quisesse incluir alguns apartamentos acessíveis. O pro grama não era, e ainda não é, obrigatório. Na Suécia, em 1978, foi promulgada uma lei estipulando que, nos prédios residenciais de três andares ou mais, todas as unidades deveriam ser acessíveis, segundo definições operacionais muito específicas. Na década de 80, vivi num apartamento assim. De acordo com a lei, não havia degraus entre o passeio e a entrada do prédio e o elevador. Este era suficientemente grande para acomodar até cadeiras de rodas maiores. Banheiros e cozinhas eram espaçosos. Mas minhas visitas estrangeiras ficavam desapontadas porque não viam nada de especial. Por exemplo, não havia rampas na entrada do prédio, porque a construção não tinha degraus. Também perguntavam: “Quantos outros deficientes físicos moram neste prédio?”. Eu explicava que era a única pessoa e que todos os apartamentos tinham as mesmas características de acesso, independentemente de quem ali morasse. A única coisa que importava era a data da licença do prédio. A partir de 1978, todos os apartamentos tinham de ser assim. Infelizmente, a lei tinha disposições muito fracas. Na década de 90, essa lei foi substituída por outra, que dá certa liberdade ao governo local para definir acessibilidade, e existem muitas moradias inacessíveis para usuários de cadeira de rodas.
 
    A Suécia é um dos poucos países europeus que têm códigos de construção prescrevendo acesso a edifícios públicos, como prédios do governo, escolas e universidades, escritórios comerciais e teatros. No entanto, esses códigos aplicam-se apenas a constru ções novas e não a prédios já existentes. Além disso, a lei que surgiu nos meados dos anos 60 também tem disposições muito fracas, e é, muitas vezes, negligenciada. Argumenta-se freqüentemente que nem mesmo os países ricos podem custear uma legislação que determina construções acessíveis. Conheço alguns estudos sobre os custos. São mais caras as adaptações retroativas de moradias existentes de uma só família, se for necessário um elevador. Mas adaptar apartamentos é consideravelmente menos dispendioso, pois o custo dos elevadores pode ser dividido entre os muitos moradores. Não custa muito adaptar prédios públicos, a menos que sejam herança histórica, principalmente se o trabalho for feito juntamente com reformas gerais. Nesse caso, haverá um custo adicional de, talvez, 10% a 15% para incluir o acesso. Obviamente, fica mais barato incluí-lo desde o início do planejamento. Assim, todos os custos de adicionais, como rampas e mudanças estruturais, serão evitados. Em prédios públicos, custos de acesso são mínimos, se este for incorporado no início. Em edifícios de apartamentos novos, o acesso representa um acréscimo de 1%, ou menos. Em casas, o elevador, o banheiro e a cozinha serão um pouco maiores, o que deve ser visto como aumento de padrão.
 
    Vamos voltar à minha história. Mesmo se houvesse uma moradia acessível, eu não poderia deixar o hospital. Precisava de ajuda de outra pessoa para tomar banho e me vestir, preparar as refeições e auxiliar-me em várias outras coisas durante o dia. Minha família não podia fazer esses serviços. A assistência pessoal e o dinheiro para custeá-la não eram fornecidos pelo governo. Eu corria o risco de ser colocado numa instituição da qual, talvez, jamais pudesse sair. O mais provável é que morresse depois de cinco a dez anos, como muitos outros deficientes que encontrei na Alemanha e em outros países, colocados em instituições e condenados a uma vida sem controle sobre seu cotidiano, sem oportunidade de realizar todo o seu potencial, constituir sua própria família, trabalhar e se tornarem membros respeitáveis da sociedade. É essa falta de esperança, e não apenas a negligência ou o abuso direto, que contribui para a alta taxa de mortalidade em instituições de todo o mundo.
 
    Tive sorte. Em 1966, ganhei uma bolsa de estudos e consegui entrar para a universidade. Naquela época, entretanto, não havia universidades européias que aceitassem alguém precisando de uma cadeira de rodas pesada e de moradia acessível. Assim, tive de morar na Califórnia e continuar minha educação lá. Nos Estados Unidos, devido aos muitos veteranos da Guerra da Coréia, havia várias universidades acessíveis. Em poucas semanas, mudei-me da enfermaria do hospital, na Alemanha, para um dormitório comum de estudantes em Los Angeles. E minha necessidade de assistência pessoal? Foi surpreendentemente simples. A bolsa de estudos permitia-me contratar colegas para trabalharem para mim algumas horas por dia. Eu mesmo selecionava, treinava e despedia os estudantes.
 
    Ainda é difícil para deficientes cursar universidades na Europa. As mais novas são acessíveis, na sua maioria. Mas não existem leis que obriguem as universidades existentes a tornar seus prédios acessíveis a todos os alunos. Também é o caso da Suécia, onde a escolha da área de estudos depende não apenas de seus interesses, mas do número de degraus entre o nível da rua e as salas de aula. Outro motivo pelo qual alunos deficientes são mal representados nas universidades é a falta de legislação abrangente que nos garanta acesso às escolas primárias e secundárias normais. Em vez disso, a maioria vai para escolas de educação especial, que não têm o mesmo padrão acadêmico das regulares.
 
    Em 1973, voltei à Europa. Pretendia coletar dados para minha tese de doutorado na Suécia. Fiquei surpreso: consegui moradia estudantil acessível sem problemas. Entretanto, não encontrei solução para o problema de transporte. Não podia levar para a Europa minha minivan, adaptada para mim, e que eu dirigia sozinho. Não havia ônibus acessíveis em Estocolmo na época, e ainda não há em 1999! Outras cidades européias começaram a substituir sua frota de ônibus inacessíveis no início dos anos 80. Mas tratava-se de uma iniciativa municipal e não o resultado de uma legislação de alcance nacional. A solução técnica é fazer, principalmente, ônibus mais baixos combinados com plataformas elétricas curtas e levadiças, ou rampas elétricas operadas pelo motorista. A União Européia determinará, entre outras coisas, o grau de acesso que todos os ônibus devem ter no seu território.
 
    Nesse campo, prevêem-se mudanças na Suécia, num futuro não muito distante. Em primeiro lugar, esperamos que a União Européia adote medidas legais de combate à discriminação de deficientes, tornando ilegal a falta de acesso em meios de transporte. Também vislumbramos mudanças na atitude de alguns políticos suecos, que ficaram impressionados com os rápidos resultados da Lei de Deficientes Americanos, ADA, e a eficácia de uma legislação antidiscriminação.
 
    Após terminar meu curso, em 1980, havia um instituto de pesquisa procurando alguém exatamente com minhas qualificações, mas não me inscrevi. O instituto localizava-se num famoso edifício histórico, com vários lances de escada. Naquela época, não havia leis que obrigassem o empregador a considerar apenas minhas qualificações para o cargo e não as adaptações que seriam necessárias no prédio. Hoje, eu ainda não conseguiria o emprego, apesar da promulgação, em maio de 1999, de uma lei sueca que proíbe a discriminação no mercado de trabalho. A lei é eficaz no sentido de exigir provas do empregador de que ele não está discriminando um candidato com base em alguma deficiência física. Entretanto, semelhante à ADA, exige que o empregador faça apenas “adaptações razoáveis”, o que, certamente, não inclui a instalação de elevadores em edifícios históricos.
 
    Em 1973, quando me mudei para a Suécia, a taxa de desemprego entre os deficientes era extremamente alta. Hoje, ainda está em torno de 70%. Entre a população em geral, ela é de 8%, aproximadamente, apesar de vários programas governamentais de reabilitação vocacional, treinamento no emprego, oferta de tecnologia auxiliar e assistência pessoal no trabalho, incentivos aos empregadores de até 90% do salário de empregados deficientes e assim por diante. Em países europeus com o sistema de quotas, a situação não parece melhor. Na Alemanha, por exemplo, companhias de médio e grande porte devem ter 7% de deficientes entre seus empregados. Uma pessoa com deficiências iguais às minhas corresponderia a três ou quatro pessoas deficientes. Os empregadores que não preenchem suas quotas têm de pagar uma multa, destinada a um fundo para custeio de tecnologia auxiliar e adaptações no local de trabalho. A maioria dos empregadores, incluindo o Ministério do Trabalho, prefere pagar a multa a empregar deficientes. A multa passou a ser considerada como um imposto a mais.
 
    Faço restrições também de cunho ideológico ao sistema de quotas, que manda mensagens erradas aos deficientes e aos possíveis empregadores. Na verdade, o sistema diz que existem pessoas cujo desempenho não é tão bom quanto o de outras, mas o empregador é forçado a admiti-Ias, pois, de outra forma, ficariam desempregadas. Essa mensagem é destrutiva para nossa imagem e auto-estima. Algumas pessoas podem conseguir um emprego dessa forma, mas o custo psicológico para o grupo é gigantesco!
 
    Nos primeiros anos na Suécia, tive uma bolsa que usei para pagar meus assistentes pessoais na Califórnia. Mas, quando o dinheiro acabou, tive de me inscrever no auxílio-moradia da cidade de Estocolmo. Nesse sistema, os auxiliares são enviados à sua casa por um assistente social que trabalha para a cidade. Como usuário dos serviços, você não controla quem virá, a que horas, trazendo o que para ajudá-lo e como irá trabalhar. O usuário não é o patrão, o que toma decisões, mas o objeto, a figura menos importante de uma burocracia enorme. Em 1984, fundei uma pequena organização em Estocolmo, a fim de persuadir o governo municipal a nos fornecer meios de começar um projeto-piloto. Queríamos a quantia de dinheiro correspondente ao custo do auxílio recebido em casa. Com esse dinheiro, pretendíamos criar nosso próprio sistema, sabendo que poderíamos fazer um trabalho melhor, por conhecer nossas próprias necessidades mais do que os assistentes sociais municipais. Levamos vários anos para vencer a oposição, vinda de muitas partes. Em 1987, finalmente, conseguimos iniciar nosso projetopiloto. Foi um sucesso tão grande que, em 1994, o parlamento criou uma lei garantindo o pagamento em dinheiro a deficientes necessitados de ajuda pessoal.
 
    Sei que é difícil para vocês entender plenamente o significado de minhas palavras. Em seu país, para começo de conversa, poucas pessoas, deficientes como eu, sobrevivem. Os que são ricos conseguem ajuda em casa, paga pela família. Aqueles cuja família não é rica ou não se importa com eles podem ter a sorte de encontrar uma instituição. Como já disse, as pessoas não vivem nessas instituições: apenas sobrevivem. Em seu país, as pessoas que precisam de muita ajuda são consideradas um fardo para a família. Muitas vezes, crianças deficientes ficam com os pais até eles não conseguirem mais fazer o trabalho, devido à idade.
 
    Na Suécia, pessoas como eu conseguem dinheiro do sistema de seguro social, que permite contratar assistentes pessoais 15 horas por dia. Dessa forma, posso trabalhar e viajar. Essas horas de ajuda tornam-me independente de minha mulher, assim como outros maridos suecos. Dividimos o trabalho doméstico. Faço minha parte através dos assistentes.
 
    Mesmo em um ambiente totalmente acessível, ainda haverá pessoas como eu, que necessitam de serviços de assistência pessoal. A ajuda pessoal pode ser a chave para uma vida plena, com todas as responsabilidades que temos como membros de uma fa mília e como cidadãos. Uma sociedade inclusiva, no verdadeiro sentido da palavra, deve fornecer serviços de assistência pessoal como um direito humano básico.
 
    Minha mulher tem sua carreira profissional, eu tenho a minha. Sem o meu sistema de ajuda pessoal, nunca consideraríamos a possibilidade de ter uma criança. Hoje, somos pais orgulhosos de uma menina de cinco anos. Essa é a minha mais bela razão para trabalhar por uma sociedade inclusiva.
 
Fonte: Ratzka, Adolf. 1999-11. “A história da sociedade inclusiva na Europa.” (In Portuguese.) Internet publication URL: www.independentliving.org/docs6/ratzka199911.html

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