sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O NOVO CONCEITO DE DEFICIÊNCIA



      Bengkala é uma pequena aldeia localizada ao norte de Bali, na Indonésia, e que apresenta uma peculiaridade bastante interessante: por causa de uma questão congênita, praticamente 2% de toda a população é composta de pessoas surdas. Trata-se de uma média altíssima, tornando única a experiência dessa vila.

      Lá, as pessoas surdas desenvolveram uma língua de sinais chamada Kata Kolok, que é utilizada não apenas por elas próprias, mas também pelos ouvintes.

      O jornalista norte-americano Andrew Solomon esteve em Bengkala em 2008 e, no livro Longe da Árvore (Companhia das Letras, 2013), relatou que todos por ali “cresceram com pessoas surdas, e todos conhecem a língua de sinais exclusiva usada na aldeia, por isso a distância entre a experiência das pessoas surdas e não surdas é menor do que talvez em qualquer outro lugar do mundo”.

      Ainda de acordo com Solomon, em Bengkala as pessoas tratavam a surdez e a audição da mesma forma como, em outras sociedades, a altura ou a raça eram concebidas, como simples atributos dos indivíduos. Após a visita, o jornalista concluiu que “onde a surdez não prejudica a comunicação ela não é uma desvantagem”.

      Façamos um interessante exercício de abstração a fim de analisar a questão seguinte: se submetêssemos os habitantes surdos de Bengkala à legislação brasileira, é certo que eles seriam enquadrados no conceito jurídico de deficiência?

      E, conforme estabelece o art. 2º da nova lei, “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

      Trata-se de conceito aberto e dinâmico, cujos contornos dependerão sempre da análise dos elementos existentes no caso concreto, não sendo possível, assim, uma definição apriorística da questão.

      É preciso destacar, antes de mais nada, que a lei distingue a limitação funcional apresentada pela pessoa da deficiência. A ausência de visão, a surdez ou a condição física do cadeirante, por exemplo, são limitações funcionais, reconhecidas como atributos da pessoa e inerentes à diversidade humana. A deficiência, por sua vez, tem caráter relacional, por consistir na interação de tais atributos com barreiras existentes no meio social, cujo resultado é a dificuldade ou o impedimento para o acesso e exercício de direitos em igualdade de condições com as demais pessoas.

      A deficiência, portanto, é externa à pessoa, por advir da inacessibilidade encontrada no meio, que resulta em uma desvantagem econômica ou social para pessoas que estão fora do padrão de pessoa média, standard de pessoa. Em última análise, decorre da incapacidade de toda a sociedade em se organizar adequadamente para ensejar a convivência de pessoas que estão fora dos padrões dominantes.

     E, na medida em que se trata de um problema estrutural, é responsabilidade do Estado e de toda a sociedade eliminar os obstáculos existentes para que pessoas com limitações funcionais participem ativamente da vida em sociedade.

      Apenas para aprofundar um pouco mais essa reflexão e para reforçar a ideia de que as limitações físicas, sensoriais, mentais e intelectuais não se confundem com o conceito de deficiência previsto no direito brasileiro, atente para o fato de que uma pessoa que apresente uma limitação física severa em um ambiente acolhedor e aberto à diversidade, talvez não vivencie a experiência da deficiência (por não sofrer o problema da exclusão social), ao contrário de alguém com uma limitação física branda que esteja submetida a um meio inacessível e fechado ao “diferente”, marcado por grande preconceito.

      Neste ponto retomamos o caso dos habitantes surdos de Bengkala que, se fossem submetidas ao regime jurídico previsto na Lei Brasileira de Inclusão, provavelmente não seriam reconhecidas como pessoas com deficiência. Ao que tudo indica, nesta pequena aldeia a surdez não se revela uma desvantagem econômica e social, na medida em que as pessoas surdas e os ouvintes se comunicam sem dificuldades e participam da vida social em uma situação de paridade. Em Bengkla, ao que parece a surdez é valorada de forma neutra, sem que lhe seja atribuída um caráter negativo ou de “defeito”.

      Conforme a lei pátria, portanto, a deficiência não se confunde com as limitações funcionais referidas anteriormente, sendo fruto da vivência de exclusão social e econômica imputada às pessoas que apresentam essas mesmas limitações funcionais. E essa exclusão, é importante destacar, advém não de fatores intrínsecos a tais pessoas, mas da recusa de adaptação do meio e da intolerância, como a ausência de rampas de acesso para cadeirantes, falta de adaptação física do transporte público, recusa de matrícula em escolas públicas ou particulares para crianças e jovens autistas ou com síndrome de Down, recusa de acesso ao emprego ou pagamento de salários indignos tão somente por se tratar de pessoa cega ou surda, etc.

      Por isso ter a exata noção do conceito de deficiência é tão importante. É o primeiro passo para compreender toda a sistemática jurídica de proteção a esse grupo populacional em nosso país.

      Infelizmente não é raro, no meio jurídico, entre pessoas que teriam o dever de conhecer o direito e a ciência do direito, o emprego de expressões como “deficientes” ou “portadores de deficiência”, fato que não representa mera confusão terminológica ou falta de rigor técnico, sendo mesmo fruto de desconhecimento da matéria e apego a parâmetros ultrapassados na concepção do tema.



FONTE:  http://justificando.cartacapital.com.br


 

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